sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Capítulo IV - O Terceiro Módulo

A caminho do escritório ou residência do Professor (não sabia muito bem o que era aquele lugar), Tiago pensou seriamente em desistir de tudo. Por um lado a coisa toda parecia séria, objetivando reflexões interessantes, mas por outro tinha ares de uma grande brincadeira. Não, brincadeira não era a palavra. Piada, enrolação, gozação... não, também não. Bem, comprometera-se com o tal “curso” ou seja lá o que era aquilo; além disso, já tinha perdido dois meses naquilo e estava perto de chegar ao final. Na verdade, embora pesados e frustrantes, estes dois meses não tinham sido muito ruins. Estava surpreso em constatar que lá no fundo talvez estivesse aproveitando o processo, não saberia bem explicar por quê, mas algo lhe dizia que não era uma perda de tempo. Sentia-se em meio a um percurso que levaria a algum lugar, mas aonde?

A mesma secretária o recebeu sorridente e trocou seu “relatório” de um só parágrafo por um envelope contendo um CD. Esta era a terceira parte do conjunto. Não fez perguntas a respeito do Professor, pois sabia que teria a mesma resposta das outras vezes, ou seja, nada de relevante sobre seu paradeiro. Como já era final de tarde, foi para casa e colocou o CD no micro. O CD instalava automaticamente um programa simples que abria uma tela dividida em duas janelas verticais. Na da esquerda, várias linhas, todas seguindo o mesmo padrão, ou seja, da esquerda para a direita aparecia um número identificador, uma data, um nome e uma ou mais palavras, supostamente descrevendo uma situação. Na da direita sempre um texto, imagem ou vídeo diferente, que mudava de acordo com o clique em uma das linhas da esquerda.

Numa passada rápida de olhos pela janela da esquerda, não foi difícil reconhecer os episódios que tinha analisado das vezes anteriores. Mais uma vez, tudo aparecia numa seqüência lógica e cronológica. O Professor, definitivamente, tivera bastante trabalho em colher as informações referentes aos diversos fatos em diversos momentos. E sob diversos ângulos. Tinha sido assim das duas primeiras vezes e o processo se repetia da terceira. Teve um insight ao refletir sobre isso e redigiu um fragmento em seu bloco de anotações: “A importância de se analisar um fato em diversos momentos cronológicos e sob diversos ângulos.” Talvez incluísse esta observação em seu resumo ao final do módulo.

Decidiu seguir a mesma ordem que seguira das vezes anteriores na investigação dos eventos descritos. Clicou na linha “briga/secretária/memo”. O texto que apareceu na janela da direita, com fotos (onde eles teriam conseguido estas fotos?) e cópias dos documentos (e essas cópias, de onde vinham?), a exemplo do que experimentara anteriormente, só contribuiu para deixá-lo ainda mais surpreso e frustrado.

Ao demitir a secretária por não ter entregue o documento no prazo, Tiago pediu que uma outra secretária o digitasse. Assistiu a um curto trecho de vídeo que o mostrava assinando o memorando pronto enquanto falava ao telefone, entregando-o ao mensageiro para despachá-lo ao outro andar. Um outro trecho de vídeo aplicava zoom a uma parte do documento e, para seu desespero, identificou erros de digitação e, graças a uma seta vermelha surgida do nada, descobriu que o texto do memorando não era exatamente o que pedira para ser digitado. Tudo muito bem explicado, com balões, animações, texto original e texto digitado... Didático e chocante. Como não lera a versão final daquilo????!!!! Mas a história não terminava aí. Chegando ao departamento de destino, o documento ficara perdido embaixo de uma pilha de papéis durante meses e, no final das contas, nada fora executado.

Clicou em “demissão/auxiliar/recepcionista” e nova história surpreendente apareceu. O auxiliar de escritório demitido fora trabalhar numa outra empresa e continuara mantendo contato com a recepcionista que tentara defendê-lo. Chegaram a se encontrar diversas vezes fora da empresa, namoraram um tempo e chegaram a tramar algumas situações para deixar Tiago em situação difícil na empresa. A rigor, não conseguiram seu intento, mas Tiago entendia agora a causa de alguns “mal-entendidos”. Durante algumas semanas, coincidentemente o período em que os dois se encontravam fora da empresa, tivera problemas com alguns visitantes que se queixavam repetidamente de tê-lo procurado e não o terem encontrado. Achou aquilo estranho, pois era um homem que consultava sua agenda diariamente. Marcava as visitas, não as recebia e não sabia o que dizer quando lhe telefonavam. Por duas vezes o assunto rendeu séria discussão telefônica e numa terceira ocasião perdeu uma concorrência importante. Jamais pensou em verificar o problema em sua fonte mais provável: a recepção do prédio. Sua sorte foi o término do namoro entre os dois, que pôs um fim inexplicado aos problemas.

Quanto mais lia as histórias, ou melhor, a continuação delas, mais Tiago se decepcionava consigo mesmo. Ficava entre a raiva e a vontade de chorar. Como pudera ser tão vil, incompetente e imprevidente, tudo ao mesmo tempo. Não media a dimensão dos fatos, não investigava, não acompanhava... que gerente era ele, afinal? O Professor estava conseguindo algo cruel: sua frustração total como profissional.

Os dias passavam, com eles os cliques, e com os cliques as histórias se sucediam num desenrolar lamentável de equívocos e surpresas desagradáveis.

O texto referente a “servente/café/suspensão” era bem curto. E doloroso. Dois meses depois do incidente com o servente que derramara café na assistente social e por isso fora suspenso por três dias, o problema no braço do servente se agravou. Foi internado, operado, acabando por se aposentar por incapacidade. Instruído por um parente, processou a empresa - como Tiago nunca soubera disso???!!! - alegando que seu problema piorara com o trabalho que realizava enquanto era funcionário. Para total surpresa de Tiago, um vídeo muito bem produzido reproduzia partes dos autos do processo, onde Tiago era citado como tendo forçado por várias vezes o servente a carregar bandejas pesadas, com garrafas de água, café e xícaras. E como se não bastasse, era submetido a humilhações na frente de visitantes! Os advogados da empresa conseguiram arquivar o processo, mas, tivesse prosseguido, Tiago certamente seria chamado a depor.
Tiago não sabia o que sentir. Os fatos eram verdadeiros, sim, mas a parte da humilhação não era. Bem, sob a ótica do servente, poderia ser... Mas era mentira que o obrigava a carregar bandejas pesadas; nunca fizera isso. No entanto, por razões que não conseguia explicar, sua revolta não era tão grande quanto esperava que fosse; de algum modo se sentia responsável pelos acontecimentos, e não ultrajado como julgara que ficaria. Talvez não devesse ter sido tão rude; talvez devesse ter pedido desculpas; talvez não devesse ter suspendido o servente; ou talvez devesse ter se preocupado em saber o que aconteceu com ele depois da suspensão.

O item “vendas/fotocopiadoras/planilhas” também apontava fatos curiosos, que mais uma vez remetiam a sua falta de percepção. A supervisora de vendas que fora rebaixada foi quem, sem alarde, indicou a moça que viria a ser assistente de Tiago dois meses depois do episódio. Amigas de infância, a nova assistente recebeu todo o apoio da amiga rebaixada, inclusive na criação das planilhas que Tiago sempre pedia que fossem preparadas antes das reuniões. Bastaria um olhar mais atento na parte inferior das páginas para identificar a sigla da ex-supervisora, “bbb”.

Tiago ficou chocado com o texto curto sobe “descontos”, que fazia referência à ocasião em que desqualificou uma empresa numa concorrência porque seu representante não concedeu desconto algum na compra. Aquela compra especificamente ficou com uma empresa concorrente, mas sua recomendação de não fazer mais negócio com a primeira, como ele tinha visto anteriormente, fora rasgada por seus superiores. Tivesse ele acompanhado melhor as licitações futuras, teria percebido que os pedidos de compra que assinava pertenciam à mesma empresa que tentara bloquear.

As histórias não se resumiam ao que acontecia na empresa em que trabalhava. No item “prêmio/mudinha”, reviu a triste história da funcionária tímida que insistia em premiar por suas não-contribuições. A continuação da história mostrava uma moça feliz trabalhando em outra empresa, em uma função diferente da que exercia no setor de compras da empresa onde Tiago era seu chefe. No almoxarifado da nova empresa, sobressaía por sua iniciativa e capacidade de organização. Sua gagueira não a atrapalhava em quase nada.

Fazia já semanas que a auto-estima de Tiago se deteriorava aos poucos com o que via e lia na tela do computador. Cada item era um novo golpe em sua outrora impecável imagem de bom gerente. Em “fax/apresentação/plágio”, percebeu toda a repercussão do que fizera, em parte por ingenuidade, ao tomar para si o fax com informações importantes que encontrara na sala de reuniões do 20º andar, em parte com uma certa culpa, pois as informações eram vitais para o sucesso de sua apresentação. E culpa era só o que sentia agora, especialmente porque à época não se preocupou em identificar o autor ou destinatário das informações e, constatava mais uma vez, o fato foi largamente comentado pelas suas costas. Tampouco percebeu à época que este episódio estava por trás de uma decisão superior que então não fizera muito sentido: fora afastado da liderança do projeto que tão bem defendera durante sua apresentação. Todo esse tempo ficou sem saber que o novo líder do projeto era ninguém menos do que o dono do fax que “tomara emprestado” na ocasião.

Quando tudo parecia conspirar contra Tiago, após pesquisar todos os itens da interminável lista, o último, “churrasco”, trazia algo de alentador em meio ao mar de decepção e frustração em que se encontrava. A história descrevia, com fotos e vídeos bastante nítidos para serem montagens, um outro churrasco onde se encontrava a “cúpula” da empresa e para o qual Tiago, obviamente, não fora convidado. Em dado momento da confraternização, seu nome vem à tona e forma-se um debate em torno de suas qualificações como gerente. Para sua surpresa, um grupo defendia até mesmo sua demissão! Entretanto, os demais ponderavam que embora tomasse decisões desarrazoadas, embora deixasse a desejar em muitos aspectos, no fundo tinha potencial e poderia ser aproveitado, com a orientação correta. Compreendeu então porque subitamente dois de seus superiores começaram a incentivá-lo a participar de congressos e seminários, inclusive sugerindo que fizesse uma especialização em alguma área de seu interesse. O que mais lhe chamou a atenção foi uma frase dita por um dos que o defendiam: “Ele se concentra muito no momento, no fato; não investiga o que houve referente ao fato anteriormente, nem procura acompanhar o desenrolar dos acontecimentos.”

Possivelmente aí estava o grande achado de todo o “curso”. De repente, inexplicavelmente, toda a frustração começou a dar lugar a uma certa satisfação, um arremedo de felicidade, como quando se descobre algo que pode ser um marco em nossa vida. Tiago não saberia explicar como nem por que, mas num instante toda a mágoa, raiva e decepção consigo mesmo começaram a se desvanecer, dando lugar a algo que ainda não sabia bem o que era, mas que não era tão ruim, um sentimento que não era tão negativo, tão carregado. E foi com esta sensação ainda não identificada que redigiu seu último comentário a ser entregue ao Professor.

“Durante 30 dias investiguei os fatos e personagens das situações que observara e analisara da primeira e da segunda vez, levando em consideração os diversos momentos cronológicos que se seguiram aos fatos e os diversos ângulos possíveis de interpretação dos mesmos. Falhei básica e infantilmente na procura de antecedentes e no acompanhamento dos fatos. Não percebi então que uma decisão tem repercussões às quais precisamos ficar atentos. Percebo agora, embora um tanto tardiamente, minha arrogância em achar que tudo sabia e minha presunção em me colocar acima dos demais colegas e subalternos. Tomar decisões, dar ordens, assinar documentos... são ações que não se esgotam no momento em que ocorrem. É preciso acompanhar os fatos durante algum tempo, analisando e avaliando suas causas e seus desdobramentos. Além disso, e igualmente importante, é avaliar a dimensão destes fatos em relação a seu contexto e às pessoas envolvidas. Por fim, flexibilizar normas e procedimentos não equivale a ceder ou ir contra os preceitos de moral e da missão da empresa.”

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