sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Capítulo III - O Segundo Módulo

A entrega do material do segundo lote de estudos pareceu uma reedição da primeira vez. Mesmo endereço, mesma secretária, Professor DeRose viajando, caixa do mesmo tamanho embrulhada no mesmo papel. Chegou a pensar que estavam entregando o mesmo material da primeira vez, mas a secretária sorriu seu sorriso amável e cativante, garantindo que, embora parecidos, os pacotes eram essencialmente diferentes.

Não conversava muito com a mulher sobre trabalho e só de tempos a tempos ela perguntava sobre o tal “curso”, ao que respondia evasivamente, ainda que se trancasse no escritório de casa durante quase uma hora todas as noites. Ficara tão curioso com a situação como um todo que passara a sair mais cedo do trabalho, para poder passar mais tempo revisando os vídeos que vieram com o primeiro lote e com o segundo não foi diferente. Abriu o pacote, viu a mesma caixa preta, leu as mesmas instruções, apertou o mesmo botão azul e admirou-se de não ver surgir uma tela de computador, mas sim uma espécie de globo terrestre, com a diferença de ter no lugar de mares e continentes e países e cidades os mesmíssimos nomes e datas dos vídeos da primeira vez.

Aparentemente, o sistema era o mesmo: tocar na tela e assistir a um vídeo. Como era muito organizado, fizera anotações numa tabela que criara com os fatos, nomes e datas da primeira vez e agora acrescera uma nova coluna à tabela e já estava pronto para mais anotações. Resolveu seguir a mesma ordem que seguira da primeira vez e foi direto a sua primeira secretária, aquela que não despachara um memorando no dia certo. Ao tocar seu nome, algo fantástico aconteceu, embora não conseguisse explicar como. Era uma espécie de vídeo, mas ocupava o globo inteiro, em três dimensões. O globo girava à medida que novas personagens apareciam, como se uma câmera mudasse o ângulo de filmagem para dar mais realismo à cena. Era algo fantástico de se ver.

Assistiu à mesma cena a que assistira da primeira vez e imediatamente, sem cortes, viu a continuação da cena... não, não era a continuação, era como se fosse algo em paralelo... uma linha do tempo que saía da conversa dos dois e focalizava a mulher em outra sala. Era patente que a segunda cena se passava cronologicamente após a conversa... mas como fizeram isso? Era maravilhoso, cinematográfico, mas esta segunda parte não o envolvia em presença... A secretária saiu de sua sala, fechou a porta e dirigiu-se ao banheiro feminino do andar. Trancou-se num dos sanitários e desabou num choro convulso, soluçado, que durou mais de dez minutos. Foi se recompondo aos poucos, ficou algum tempo com o queixo apoiado nas mãos, saiu do sanitário, retocou a maquiagem, colocou seus óculos escuros e voltou ao trabalho. Enquanto ele se sentava à mesa de trabalho, ainda cinematograficamente o filme mudou para seu apartamento - Tiago não sabia por que, mas era certamente o apartamento dela, um apartamento comum, com uma criança vendo televisão e uma empregada terminando de passar algumas roupas. A secretária entrava pela porta da frente, beijava o filho, ia para a cozinha, sentava numa cadeira e tinha novo acesso de choro. Confortada pela empregada, contava a briga que tivera no trabalho, com fatos que Tiago desconhecia e que jamais passariam pela sua cabeça.

- Eu não entendo. Chego no horário, nunca esqueço de nada, trato ele bem, falo bem dele para as outras secretárias, não sei por que ele fez isso comigo. Me humilhou. Eu errei, claro, não tem desculpa, mas não é assim que se fala. Por quê, meu Deus, por quê? Fui tratada como uma cachorra. Não sou perfeita, mas não erro tanto assim... Se pelo menos eu tivesse outro lugar pra ir... mas preciso do emprego para pagar as contas e a escola do meu filho.

Tiago estava boquiaberto. Não sabia de nada disso, filho, contas, empregada... ela tinha errado, era dever dele enquanto chefe corrigi-la. Ora bolas. Mas o choro de alguma forma trazia algo novo à história, não sabia bem o que. E seria verdade? Ele não estava lá, como saberia? As coisas começavam a ficar mais complexas. E estranhas.

Na seqüência vinha o auxiliar de escritório que roubara o pacote de biscoitos pela metade. A mesma cena era reproduzida e sua continuação se dava na mesma sala em que Tiago vira o rapaz em flagrante delito, aparentemente após ter sido demitido. O garoto conversava com uma mulher - Tiago a reconhecia como uma recepcionista da empresa... não era telefonista, como pensara antes, enganara-se -, que estava enraivecida de saber que ele fora demitido.

- Mas você não roubou, eu te dei! Eu disse para passar na minha mesa e pegar o maldito biscoito. Ele não pode fazer isso com você! Eu vou falar com ele, que absurdo!

- Não precisa, tia, deixa pra lá. Eu não tava gostando mesmo daqui... Pobre é isso mesmo: a corda sempre estoura do lado do mais fraco. Brigado. Eu dou notícias.

Não, não podia ser verdade. Aquilo era alguma coisa preparada para fazê-lo pensar em algo, mas em quê? O garoto roubara, era um ladrãozinho, tinha cara de pivete. Ele tinha experiência com isso. Sabia avaliar a personalidade de seus funcionários. Nunca errara. E como provar que aquilo tudo era verdade? Tinha coisa estranha ali.

Próximo da lista: o servente suspenso por derramar café na assistente social. Já vira a cena algumas vezes da primeira vez, mas não contava com a seqüência. Ao sair de sua sala, o servente fora abordado pela assistente social, que previra a descompostura e o tinha esperado para saber o que acontecera. Foram conversando até o hall dos elevadores:

- Ele te mandou embora?

- Não, mas me suspendeu três dias.

- O quê? Isso é um abuso. Quem ele pensa que é?

- Uma besta, é o que ele é. O cara tem acessos. Acha que sabe tudo. Mas olha, não é só ele. Essa gente acha que ter cargo alto é ser autoridade, é ter competência, é poder mandar, humilhar, espezinhar... eu, pra dizer a verdade, já estou acostumado. Mas ele exagerou. Não era pra tanto. Isso acontece... Ainda se eu escorregasse sempre... Poxa, foi a primeira vez que eu derramei café em alguém... E agora eu estou ficando pior da minha doença no braço... às vezes fica meio dormente...

Uma besta???!!! Quem ele pensava que era para ter dito aquilo? Deveria tê-lo demitido, e não se contentado com a suspensão... Entretanto, a cena que veio depois o surpreendeu. Aparentemente era outro dia, e o servente conversava com a assistente social, que o convidava para trabalhar com ela na clínica onde prestava serviços, pelo dobro do salário. Imediatamente foi ao departamento de recursos humanos, pediu demissão e saíram juntos do prédio. Tiago ficou mais chocado por não se lembrar de que o servente se demitira. Tinha um cuidado extremo em saber onde andavam os funcionários, o que faziam, para onde iam. Deveria ter deixado este passar em branco... Nem sabia que se demitira. E pelo dobro do salário???? Tinha de haver algo errado.

Os dias se passavam, como da primeira vez. Embora desconfiado da veracidade dos filmes, das situações apresentadas como seqüências das cenas originais, Tiago não conseguia controlar a curiosidade e sentia que algo se remexia dentro dele, algo ruim, mas que ainda não sabia definir com precisão. No íntimo, sentia que tudo poderia ser mesmo verdade, autêntico.

A supervisora que trocara as planilhas na tomada de preços e fora rebaixada recebia, na seqüência, a visita de uma jovem que Tiago não conseguira identificar.

- Satisfeita agora, queridinha? Eu disse pra não se meter com o meu namorado que eu ia acabar com você.

- Você trocou as planilhas!!!!!

- Quem sabe? Muitas coisas inexplicáveis acontecem por aqui - ironizou a jovem. - Agora vê se aprende a não mexer com quem não deve.

- Mas eu não mexi com ninguém! Eu não sabia que ele tinha namorada...

- Agora sabe. Estou atrasada. Boa sorte no seu novo “cargo”. - e saiu da sala batendo a porta.

Ah, não, intriga de namorados era demais. O que isso tinha a ver com o Professor, com o “curso”, com a vida dele? E como ia saber que uma mulher enciumada trocara as planilhas da licitação? Não dava para saber... ou dava? Certo, poderia ter investigado, dado nova chance, tentado ouvir o outro lado... mas ninguém fazia isso, não era a praxe na gerência... e além disso, não tinha tempo para ficar bancando o detetive.

Tiago começava a encontrar um nexo distante entre as situações, algo próximo ao humor negro: parece que as coisas eram montadas para surpreendê-lo - essa era a palavra, surpresa. Ficava surpreso com o desenrolar de situações que para ele pareceram na época tão triviais. As seqüências eram surpreendentes, inesperadas... bem, isso se fossem mesmo verdadeiras... Não deveria ser, por certo. Como pudera se enganar tanto em relação a tanta coisa? como pudera não perceber tanta coisa? como pudera ficar alheio a tantos problemas? como pudera não evitar tanta injustiça? Não, tinha algo errado. Era um bom gerente, de alto gabarito, sempre fora o primeiro da turma, era reconhecido pelos colegas, respeitado por seus superiores.

O vendedor que não gostava de dar descontos constituiu-se em outra surpresa. A cena original prosseguia na sala do diretor-superintendente, com mais dois outros gerentes. A recomendação de não contratar os serviços do vendedor futuramente foi motivo de chacota. Tiago custou a entender o que se passava:

- Como é que é? Não contratar de novo? Com base em quê?

- Na não-concessão de descontos.

- Mas quem foi o incompetente que sugeriu esse absurdo?

- Tiago, o novo cara do décimo andar. E tá por escrito. O que o senhor vai fazer?

- O que eu sempre faço com palhaçadas, senhores. - e rasgou a recomendação, enquanto prosseguia. - E a firma continua conosco, entendido?

Incompetente??? Agora era demais. Chega! Isso está passando dos limites. E com isso Tiago passou uns bons dois dias sem sequer tocar na caixa mágica (era assim que a chamava agora). Ia dormir pensando nas situações, se poderiam ser consideradas verídicas... e algo crescia dentro dele, um misto de desconfiança com insatisfação com revolta e com... alguma coisa indefinível ainda. Incompetente era uma palavra forte demais para descrevê-lo. Mas na boca do diretor-superintendente ela tomou proporções gigantescas. Seria incompetente mesmo? Dúvidas... a cada dia mais dúvidas se estabeleciam em sua mente.

As reuniões semanais em que instituíra o Certificado Zero começaram a destroçar sua auto-estima como gerente. Viu os empregados se divertindo antes de uma reunião, fazendo piadas sobre quem seria o novo premiado, quais seriam os prêmios e ridicularizando a funcionária que jamais abria a boca. Afinal, sofria de gagueira e morria de vergonha de se expor. Uma das seqüências foi tocante e deixou Tiago arrasado. A funcionária chorando, soluçando, em meio a um encontro informal com as amigas do andar. A cena era mais patética ainda quando ela tentava falar sobre o assunto e gaguejava. Tiago jamais soubera até aquele momento, mas a psicóloga da empresa custou a elevar a auto-estima da menina.

Duas cenas, no entanto, chocaram Tiago ainda mais e colocaram sua auto-estima definitivamente no chão.

Uma foi a continuação da apresentação em que foi elogiado pelo vice-presidente. A câmera focalizava um bar no final da tarde da apresentação, com o próprio vice-presidente e alguns outros membros da cúpula da empresa. A conversa ia animada, quando alguém disse:

- O senhor sabia que o Tiago não preparou nada daquilo?

- Como assim?

- Ele roubou um fax que eu esqueci na mesa de reuniões do 20º andar há três dias. Eu recebi da filial nova. Não falei nada porque pensei que eu mesmo é que tinha perdido o documento. O fax estava ilegível em cima e eu não conseguiria provar que tinha vindo para o meu ramal.

- Isso é muito grave. Você tem certeza disso?

- Pedi que me enviassem outra vez e chegou ontem. Já estava tudo muito em cima da hora e resolvi não falar nada. Está aqui comigo, olha só.

- Mas isso é tudo o que o Tiago apresentou como sendo dele!

- Que pilantra! Amanhã levo o caso ao presidente. Algo me diz que esse é mais um que não vai durar muito aqui...

A outra foi o churrasco. Ou melhor, o que aconteceu antes do churrasco. O dono da casa onde foi realizado o encontro conversava com os demais convidados, aparentemente alguns dias antes da festa e Tiago não se conteve de raiva ao perceber que não tinha sido convidado por respeito ou adequação ao grupo. As reuniões aconteciam muito freqüentemente e ficaram com receio de que Tiago descobrisse e resolveram convidá-lo uma vez para manter as aparências. O que mais o chocou foi o que disseram dele.

- O cara é muito metido. Acha que sabe muito e que está por cima.

- É, mas não é assim que a presidência tá vendo ele não... Aliás, ninguém gosta dele. O pessoal de baixo morre de medo; afinal, ele já demitiu gente sem mais nem menos.

- Não tem dimensão de nada. Não sabe analisar os fatos.

- Olha, faz um favor pra gente: convida ele só dessa vez, tá? Dessa vez eu vou pra ser solidário, mas da próxima, se ele for, tô fora. - e todos riam e concordavam.

Tiago não poderia estar mais perplexo e arrasado. Parece que tinham destruído tudo em que acreditava com relação a si mesmo. Ainda desconfiava das cenas, mas no fundo sabia que eram verdadeiras, não sabia explicar o que sentia. Via e revia tudo e só conseguia ficar mais frustrado. Anos de estudo, de dedicação, para ser classificado de incompetente? Mas as referências eram tantas que começava a se convencer de que não era tão bom gerente como pensava. Precisava conversar com alguém, mas quem? Não queria falar disso no trabalho; aliás, não deveria, depois de tudo que descobriu sobre o que pensavam dele. Não queria envolver sua mulher, sempre tão alheia a seus problemas profissionais. Mais uma vez o Professor não foi encontrado. E mais uma vez estava sozinho. Ele e seus métodos de trabalho. Ele e suas culpas. Ele e suas frustrações. Ele e suas recentes descobertas: as implicações de suas decisões. E essas foram as palavras-chave que incluiu em seu relato de final de segundo módulo.

“Durante 30 dias analisei as implicações das situações que analisara da primeira vez. Estou cheio de dúvidas, frustrado, surpreso e arrasado com minhas descobertas. Chego a me perguntar se sou mesmo o bom gerente que pensava que eu era. Alargando o contexto em torno dos fatos observados, percebo que não atinei com o que envolvia as situações vividas. Algumas decisões tiveram causas que não soube investigar e que permaneceram desconhecidas para mim, gerando conseqüências que não me interessei em perseguir. Fiquei preso demais ao aspecto gerencial e descuidei de outros fatores, humanos ou inerentes ao trabalho em si, meu e dos empregados. Na verdade, não gerenciei nem administrei; meramente fiscalizei o cumprimento de normas, muita vezes incoerentes ou por demais estritas, e me ative ao momento, ignorando o antes e o depois.”

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