
Na noite anterior, uma secretária muito educada tinha trazido os papéis para que assinasse e lhe entregou um cartão com o endereço de onde deveria buscar o material do primeiro módulo na segunda-feira, durante a manhã.
Saiu de casa num misto de excitação e receio de estar fazendo a coisa errada, mas chegou ao prédio por volta das nove horas, estacionou e só então reparou que não se tratava de um prédio comercial. Será que o Professor morava aqui? Duas vezes tocou a campainha para que a mesma secretária da noite anterior o recebesse com o mesmo sorriso agradável e o conduzisse a uma sala de espera. Pensou imediatamente que o próprio Professor o viria recepcionar.
Enganara-se. A secretária voltou logo depois com um embrulho pequeno, parecendo uma caixa embrulhada em papel pardo e fita adesiva. Tiago não resistiu e perguntou:
- Me desculpe a curiosidade, mas você me responderia uma coisa?
- Claro, o que é? - disse a secretária, que não parava de sorrir.
- O Professor mora aqui? - perguntou Tiago, meio sem graça.
- Sim e não. É um dos apartamentos dele, mas não tem dia certo de aparecer. Às vezes trabalha aqui, outras vem só pegar papéis, outras vem com a mulher e passa uns dias... Satisfeito? - respondeu.
- Bastante, obrigado. E desculpe mais uma vez... ele... ele está?
- Não senhor, hoje não veio. Mas ligou e pediu que lhe entregasse esse pacote que tinha deixado comigo ontem depois do encontro.
- Ah, tá... Bem, então já vou indo... desculpe a indiscrição. - disse Tiago levantando-se.
- Por nada. Por favor, assine aqui o recebimento do material. - pediu a secretária, eficiente.
No carro, a caminho da empresa, Tiago mudou de idéia e pelo celular inventou uma indisposição e voltou para casa. Não agüentava de curiosidade para estrear o equipamento, ou seja lá o que houvesse dentro do pacote. Além do mais, sua mulher estaria trabalhando e poderia desfrutar de total privacidade o dia inteiro. Se a coisa fosse ridícula como no fundo pensava que seria, iria trabalhar.
No sofá da sala abriu o pacote e um papel caiu no chão. Eram instruções de como utilizar um equipamento ou uma máquina qualquer. Bem simples, por sinal. Ligar no botão azul e desligar no botão vermelho. Ao fim de 30 dias, redigir uma pequena descrição do que se passou durante o período. Tudo ainda muito nublado, resolveu acabar logo com o suspense e desembrulhou o pacote.
Na verdade, era uma caixa preta, um cubo de aproximadamente vinte centímetros de aresta, com os dois botões. Colocou a caixa na mesa, sentou-se a sua frente e apertou o botão azul. A parte superior se abriu como uma tampa e uma pequena tela de computador apareceu. Após tocar em “Começar curso”, uma nova janela surgiu com nomes... muitos nomes... nomes que ele conhecia... nomes de pessoas... como era possível?... eram pessoas que tinham trabalhado com ele em todas as empresas por onde passara, inclusive na atual. O curioso, Tiago observou depois de uma análise mais detalhada, é que eram pessoas que sempre ficaram sob suas ordens, supervisão, chefia... enfim, subalternos. Tratava-se de uma tabela de várias linhas, com um nome na coluna esquerda e uma data na coluna direita.
Mas como sabiam de tudo isso? Como puderam obter esses dados? De repente a coisa começava a cheirar a uma invasão de privacidade, a um imiscuir-se em sua vida profissional. Que abuso! O que saberiam mais de sua vida? Chantagem? Não era tão importante ou rico assim para ser chantageado...
O primeiro nome era de sua primeira secretária. Clicou e não pôde esconder a surpresa. Um filme começou a ser apresentado na tela, imagem e som, com uma situação da qual se lembrava muito intensamente. Foi uma briga que teve com sua secretária por não ter despachado um memorando no dia certo, o que lhe trouxe problemas com o chefe do departamento de informática dias depois. Tinha-a colocado em seu devido lugar, apontado a necessidade do cumprimento de seus deveres no prazo solicitado e, didático, mostrou-lhe as conseqüências da não-atenção a suas responsabilidades: primeiro duas advertências e depois a demissão. Sumária. Uma empresa se construía com o cumprimento de regras e prazos, dentro de um modelo rígido de organização. E, naquela sala, ele ditava as regras e ela as cumpria.
Sua maior surpresa foi o caráter um tanto quanto esotérico do filme. Como teriam conseguido aquilo? Teria sido filmado durante a briga? Que coisa estranha... O que aconteceria com os outros nomes?
Tocou no segundo nome, o de um auxiliar de escritório que uma vez apanhara roubando metade de um pacote de biscoitos da mesa de uma telefonista. Sem pestanejar, levara o caso ao chefe do garoto, que o demitira sem maiores explicações. Afinal, hoje eram biscoitos, amanhã uma carteira e depois material da empresa, computadores e sabe-se lá o que esse tipo de gente poderia fazer.
Incrível! Como o Professor conseguira aquilo tudo? E filmado, ainda por cima? Mais parecia bruxaria do que tecnologia. E por que mostrar tudo aquilo a ele? Coisas já passadas... Curso? Que tipo de curso era aquele? Para quê? Não conseguia encontrar um nexo... Estava surpreso, desconfiado e curioso.
Outro nome: um servente que derramara café numa assistente social durante uma reunião em sua sala. Fez com que trouxesse água fervendo para limpar o vestido da mulher, esperou que ela fosse embora e lhe aplicou uma suspensão de três dias. Não queria demiti-lo porque achava que tinha potencial, mas não podia deixar passar em branco tamanho desleixo.
Outro clique e viu a supervisora de vendas que era na verdade subordinada a ele. Certa vez, pedira-lhe a cotação para novas fotocopiadoras da filial que seria inaugurada e ela apresentou um relatório com os preços das máquinas fornecidas por quatro empresas diferentes. No entanto, trocara as planilhas e os cálculos acabaram errados, os de um fornecedor como sendo os de outro. Acabaram comprando as máquinas pelo preço mais alto. Não pôde demiti-la porque tinha sido indicada pelo diretor-superintendente, mas conseguiu rebaixá-la a um cargo burocrático, onde não tivesse de realizar cálculos.
Já passava do meio-dia e Tiago estava como que vidrado na pequena tela, clicando nomes, lembrando-se de situações, revivendo fatos... definitivamente a coisa era curiosa... como conseguiram aquilo? como filmaram? não.. não acreditava em sobrenatural... não podia se tratar disso... era pura tecnologia, mas qual? E qual o propósito?
Enquanto fazia um lanche, tentou ligar os nomes, as empresas, as situações e o único ponto de contato continuava sendo o fato de se tratar de subalternos, gente sob sua direção, supervisão, chefia... mas por que apontar todas estas situações, se eram ocasiões onde tinha agido corretamente, no interesse da empresa, segundo suas ordens... Sempre fora humano: evitava xingar, ofender, gritar... Qual seria então a conexão entre estes fatos? Qual a razão subjacente para que voltasse a pensar neles?
Tiago era um homem inteligente, com formação matemática. Jogos o desafiavam e gostava de esmiuçar relações numéricas e lógicas. Os cliques foram se sucedendo, novas situações antigas se superpondo e nada fazia sentido. Saía do trabalho direto para casa, jantava e ia para o escritório rever o que já tinha visto ou assistir a novos filmes de sua vida profissional. Era disso que se tratava, no fundo: instâncias de sua vida como gerente. Essa era a primeira e única conclusão a que chegara até o momento, quase duas semanas dentro do primeiro módulo. Uma infinidade de nomes, datas e ocorrências que não faziam muito sentido dentro do escopo de um “curso”. Tentara entrar em contato com o Professor, mas fora informado de que estava em viagem. Teria de continuar sozinho.
Uma nova situação alertou-o para o fato de não se tratar apenas de pessoas sob seu comando, mas também profissionais visitantes, vendedores, como o caso de um vendedor que se recusava polidamente a conceder o mesmo desconto na compra de um equipamento importado que concedera três meses atrás. Deixou claro que se tratava de um absurdo sem tamanho e que provavelmente não recomendaria a empresa para nova tomada de preços futuramente. O mundo em crise, em recessão, e o tal vendedor empatando um negócio de cinco mil dólares por causa de percentagens, migalhas? Escorraçou o homem e fechou negócio com um concorrente, que também não concedeu o desconto pedido.
Trabalhara em uma firma de importações, onde resolvera colocar em prática algo que aprendera num seminário. Reunia a equipe uma vez por semana para uma sessão livre de sugestões e avaliações dos projetos em andamento. Resolveu premiar semanalmente um funcionário que sobressaísse por uma boa idéia, pela eficiente condução de uma estratégia ou por um negócio bem fechado. O premiado recebia uma salva de palmas, às vezes uma gratificação em dinheiro e o nome impresso no jornalzinho mensal. Posteriormente, decidiu “premiar” também o funcionário que menos contribuísse para o departamento durante a semana. A “vencedora” era sempre a mesma: uma moça do setor de entregas, que jamais abria a boca durante as reuniões e limitava-se a sorrir com seu “prêmio” semanal, um “Certificado Zero”. Ficou conhecida como mudinha e acabou saindo da empresa.
Os filmes iam e vinham, sempre com situações que o deixavam como se em transe, tentando desvendar que tipo de tecnologia era aquela que filmava o passado, o seu passado, situações escolhidas a dedo durante seu desempenho como gerente.
Tentava sempre impressionar seus superiores com relatórios bem redigidos, gráficos detalhados, apresentações impecáveis. Esmerava-se na comunicação com os empregados, na escolha das palavras, sempre com um sorriso nos lábios, uma palavra de carinho, uma piadinha oportuna, uma menção a uma notícia de última hora referente a alguma parte do mundo. E neste contexto, um filme deixou-o orgulhoso agora em retrospecto - ei, essa era a palavra: retrospecto... tratava-se de uma retrospectiva de sua vida gerencial... -, tanto quanto o deixara na ocasião em que o fato ocorreu. Foi durante uma apresentação da nova marca de um dos produtos. Falou depois do gerente de produção e do diretor de publicidade. Encontrara por acaso na mesa de reuniões do 20º andar um fax com algumas informações preciosas, o que tornou seu trabalho bem mais fácil. Fez uma apresentação impecável, as palavras e os gráficos movendo-se na tela em animações futurísticas. E graças a seu carisma, recebeu elogios do vice-presidente, que falou a seguir e destacou a importância de ter na empresa profissionais como ele. Sorriu agora como sorrira então: orgulhoso e tímido, mas recompensado.
Tão logo fora promovido em seu atual emprego, foi convidado pelos chefes de departamento para um churrasco num final de semana. Sentiu-se honrado e com a certeza de que sua ascensão não teria volta: estava fadado ao sucesso. Todos lhe deram os parabéns, ficou a par das fofocas do prédio, quem saía com quem, quem tinha interesse no cargo de quem, enfim, passou a fazer parte da “cúpula”, das intrigas da corte, prova mais do que clara da aceitação entre seus pares.
O Professor não se enganara quanto ao prazo. Utilizou os 30 dias a que tinha direito, vendo e revendo os vídeos, analisando as situações apresentadas, tentando decifrar as razões por trás daquela sucessão de ocorrências aparentemente sem nexo algum entre elas. Não teve sucesso algum tampouco quanto a como os tais vídeos teriam sido feitos e era sempre com um arrepio que associava o Professor a algum tipo de bruxo, feiticeiro ou metafísico, pois a rigor não poderia haver outra explicação.
Pensou várias vezes em desistir, mas a multa que se comprometera a pagar falava sempre mais alto; afinal, sua palavra também estava em jogo... sua reputação... Bem ou mal, tinha concordado com o “curso”, não podia voltar atrás. Será que algum conhecido sabia de tudo e estava esperando sua desistência para trazer tudo a conhecimento público? Pelo sim pelo não, resolveu prosseguir com os “estudos” da forma como fora instruído a fazer.
No penúltimo dia, sentou-se para escrever o relato devido, de modo a entregar o primeiro lote e apanhar o segundo lote de material. Não tinha a menor idéia do que escrever. Não sabia se o documento deveria ser longo ou breve, detalhado ou objetivo, profundo ou superficial, em primeira pessoa, em forma descritiva, um parágrafo de texto corrido ou em forma de itens. Pensou em tudo que fez, nos vídeos a que assistiu, nas situações por que passara, gostava da palavra retrospectiva... Continuava sem sair do lugar, não conseguia começar a escrever algo que fizesse sentido. Perguntou-se racionalmente: o que eu fiz nesses últimos 30 dias com esses vídeos? Assisti, observei, analisei... - isso, análise, analisei situações... Foi isso que fiz. Análise, retrospectiva, carreira, gerente, quatro palavras-chave que davam forma ao texto que produziria.
Já sem muita paciência e começando a achar que qualquer coisa que entregasse serviria - o Professor fora bem claro quanto a não haver julgamento ou avaliação -, decidiu-se pela simplicidade e honestidade:
“Durante 30 dias observei em retrospecto diversas situações ocorridas durante minha carreira gerencial até o presente momento. Identifiquei fatos, situações, nomes e datas. Recordei-me de como me senti durante os fatos relatados e posicionei-me dentro do contexto que envolvia cada situação apresentada, como pessoa e como profissional. Analisei cada decisão e consegui lembrar do que me levou a tomá-la. Concluo que agi estritamente dentro do escopo administrativo, visando única e exclusivamente ao bem da empresa, sem me deixar contaminar por fatos alheios ao trabalho, sentimentalismos, favorecimentos e particularizações. Toda decisão foi baseada no fato em si, considerando o momento em que ocorreu.”
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