sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Capítulo I - A Proposta

O lugar era típico, igual a todos os outros em eventos semelhantes: salão de convenções num hotel cinco estrelas, organizadoras sexy correndo para lá e para cá, mulheres vestidas de noite, homens elegantes, risadas mais altas, conversas ao pé do ouvido, contatos sendo feitos, flertes, lanche farto, tudo que é necessário a um encontro de grandes executivos e profissionais em ascensão.

Apresentações, workshops, demonstrações de softwares, tudo dentro do esperado: coisas boas, coisas ruins, no mínimo mais um certificado de participação para melhorar o currículo. Segunda a sexta, dia inteiro; no fundo cansa mais do que trabalhar, por incrível que pareça, mas vale para quebrar a rotina. No entanto, Tiago chegou ao último dia satisfeito: fez bons contatos, mostrou seu conhecimento, assistiu a umas palestras interessantes... é, pode-se dizer que foi um bom encontro. Só falta o fechamento, com o sorteio de uma surpresa, o que será? Bem, a mulher só sai do trabalho às sete e como ele hoje vai buscá-la, não custa assistir ao encerramento. Quem sabe ganha algo no sorteio?... Além disso, está cansado, a cadeira é confortável... é... vamos ver no que dá esse sorteio...

Pouca gente no auditório, ele está sentado no meio, vêm os discursos de praxe, agradecimentos, lista de patrocinadores, anúncios... e agora o grande sorteio. Terceiro prêmio, um final de semana num hotel-fazenda: a ganhadora saltita de felicidade, provavelmente pensando num final de semana com o namorado. Segundo prêmio: seis meses num curso de línguas, a escolher: bem sorteado... o rapaz parece realmente não poder pagar por um curso desses. Primeiro prêmio: mil dólares em livros da editora patrocinadora do evento, líder de mercado em títulos de Administração de Empresas. Para variar, Tiago não ganhou nada, mas já são seis da tarde e ele não precisou fazer hora num bar qualquer das redondezas. Aplausos e desejos de boas realizações e bons negócios, despedidas rápidas e Tiago se levanta para sair do Auditório, estica as pernas, os braços, e, já no corredor entre as cadeiras sente alguém tocando-lhe o ombro.

Vira-se e uma mulher linda e sorridente comunica-lhe que o Prof. DeRose deseja falar-lhe, se não for incômodo. Incômodo? DeRose? O maior guru do mundo dos negócios? O mestre dos mestres da Administração? Autor de inúmeros livros de cabeceira dos aprendizes de gerente? Claro que não é incômodo algum. A mulher o leva até uma sala, onde um senhor de seus 65 anos o cumprimenta com um forte aperto de mão. Tiago ainda está meio zonzo com a situação; o que será que o Prof. DeRose poderia querer com ele? Nunca se viram.

- Boa tarde, Tiago. Sente-se, por favor. Prometo não tomar muito o seu tempo. Afinal, é o último dia do Congresso e você deve estar cansado.

Como sabia seu nome? Meio estranho, isso. Bem, vamos pagar para ver.

- Nada disso, o prazer é meu. Li alguns de seus livros e sou fã de carteirinha... Não é todo dia que a gente pode conversar com o grande Prof. DeRose. - disse e se sentou, ainda curioso.

- Ora, ora, Tiago, o que é isso?... Não me encabule... Eu já estou de saída do mundo... vocês jovens é que irão segurar o bastão daqui por diante... Sou só alguém que já viveu um pouco mais do que você... Mas vamos ao que interessa. Quer beber algo? - perguntou, levantando-se e se servindo de um whisky com gelo.

- Aceito. Pode ser o mesmo que o senhor está bebendo. - Pensou em quanta honra tomar um whisky com o Prof. DeRose. Quando contasse isso na empresa...

- Aqui está. Se quiser mais, é só se servir... já não posso ficar me levantando toda hora. - disse o Professor com um sorriso. Era um homem de boa aparência, com o peso da idade, cavanhaque e barba grisalhos, a mistura tradicional do sábio e do bon vivant.

Após alguns minutos de silêncio, durante os quais parecia estudar Tiago, o Professor prosseguiu.

- Como eu disse, vamos ao que interessa. Você pode estar estranhando um pouco eu saber o seu nome... - disse, sorrindo misterioso.

- Na verdade sim... Confesso que me deixou curioso.

- Entendo. Na verdade, minha empresa de consultoria sempre oferece um prêmio durante este congresso. Analisamos os currículos dos participantes e um grupo de pessoas escolhe anualmente um dos participantes para receber nosso prêmio. Você nunca deve ter ouvido falar disso, naturalmente... mas é proposital. Somos uma organização filantrópica e não gostamos muito da banalização da propaganda.

- Realmente, nunca ouvi falar... Acho que nem conheço sua empresa... - interveio Tiago, agora mais curioso ainda e surpreso com a situação em que se via.

- Ah, sim, tome nosso cartão. Gerentes Unidos é o nome. Como disse, não anunciamos; você não vai nos encontrar nas páginas amarelas. - disse com um sorriso, entregando um cartão a Tiago, que o leu e guardou no bolso do paletó. O Professor continuou:

- Deixe-me falar mais de nosso prêmio anual. Sabemos que este Congresso reúne a nata dos administradores de nosso país e por isso decidimos patrociná-lo. Estudamos os currículos dos participantes e, com base em diversos critérios que não quero aprofundar agora, escolhemos três participantes para oferecer nosso prêmio, uma espécie de curso. Escolhemos sempre três para o caso de até dois não aceitarem nossa proposta.

Tiago não poderia estar mais confuso e ao mesmo tempo curioso. Alguém já teria recusado o convite?

- E eu sou que número da lista? - perguntou, sem muita convicção e com um sorriso amarelo nos lábios.

- O primeiro da lista. Se recusar, entraremos em contato com os outros dois amanhã. Suponho que esteja curioso com o que eu tenha a lhe oferecer... - disse e sorriu enigmático.

- Estou sim, confesso. De que se trata este prêmio? Embora eu não saiba se mereça... - falou Tiago, tentando demonstrar modéstia, mas no fundo já um pouco agraciado por ser o escolhido dentre tantos.

- Vou explicar. Nosso prêmio se chama O Super-Gerente e é difícil classificá-lo. Na verdade é como se fosse um curso e você será orientado indiretamente por mim. Uma vez que você aceite a proposta, você só tem de assinar o termo de compromisso e receber a primeira parte do material. Você trabalhará com este material durante trinta dias e o devolverá intacto para poder receber a segunda parte. Você também utilizará este material durante trinta dias e o devolverá. O mesmo ocorrerá com a terceira parte. Ao devolver a terceira parte, você receberá a quarta parte, que ficará em suas mãos para sempre; não é preciso devolvê-la. Nada lhe posso adiantar sobre o material e o equipamento por questões de sigilo, mas posso assegurar que você estará sob um treinamento intensivo para se tornar O Super-Gerente deste ano. Esta é nossa nona edição do prêmio e até agora nossos candidatos se saíram muito bem e ficaram muito satisfeitos. O que acha?

Tiago não tinha compreendido muito bem ainda do que se tratava o tal prêmio; algo nele gostava da idéia, mesmo compreendida só parcialmente, e algo nele não se sentia muito à vontade. Disse então:

- Honestamente, fica um pouco difícil para mim aceitar ou não algo que não me foi apresentado completamente. Desculpe a sinceridade, mas ainda não consegui ter uma idéia bem concreta deste prêmio. - foi o que conseguiu dizer, um tanto hesitante.

- Claro, claro - disse o professor -, não o culpo. Não posso ser muito mais específico do que isso e na verdade você terá de aceitar ou não um tanto quanto no escuro. Não ficarei chateado se recusar, mas você, de acordo com nossa avaliação, tem o perfil exato daquele que consideramos como possuindo o potencial para se tornar um Super-Gerente, e não gostaríamos de desperdiçar a oportunidade. Temos em mente tão-somente seu crescimento profissional e humano. Talvez eu mesmo e minha reputação sejam as únicas credenciais que poderia lhe oferecer no momento. É pegar ou largar.

Tiago sentiu uma ponta de raiva quando considerou esta última frase como sendo um pouco arrogante demais. Como poderia pegar ou largar algo de que não conhecia os detalhes? Por outro lado, estava feliz com o convite, pois de fato a reputação do Professor DeRose era mais do que uma credencial, era um verdadeiro passaporte para o sucesso.

- Professor - tentou prosseguir Tiago -, desculpe-me mais uma vez a franqueza, mas não sei se devo aceitar. Os detalhes ainda estão meio obscuros. O material é de leitura? Serei avaliado? Quais os critérios? O que terei de fazer exatamente?

- Suas dúvidas são muito pertinentes, Tiago. - respondeu o Professor. - Posso dizer que você receberá algumas instruções em papel, não mais do que uma página, juntamente com um equipamento sofisticado. Você só precisa ler as instruções e utilizar o equipamento, que lamentavelmente não posso dizer qual é... mas posso garantir que ele não lhe causará qualquer mal... - disse o Professor, sorrindo com a própria brincadeira.

- Sei... - disse Tiago. - O senhor falou em algo relativo a assinar papéis...

- Ah, sim, claro - retomou o Professor, ajeitando-se na poltrona. - Isso é muito importante. Como se trata de um prêmio, evidentemente tudo é gratuito, com uma única exceção.

- E qual é? - perguntou Tiago desconfiado.

- Se você desistir antes de receber a quarta parte do material, você terá de nos indenizar em 10 mil dólares. Essa é a condição. Na verdade, se você pensar bem, seu único compromisso é receber o material, ler as instruções, utilizar o equipamento fornecido, devolver o equipamento... fazer isso três vezes e receber a quarta parte... mais nada... Ah, sim - prosseguiu, parecendo lembrar-se de algo importante -, você falou em avaliação. Você será avaliado por mim, sim, e ao final de cada, digamos, módulo, ao devolver o primeiro, o segundo e o terceiro lote recebidos, terá somente de entregar um comentário escrito de um parágrafo sobre a experiência que vivenciou. Só isso. Não vou julgar o que escrever, nem dar nota; só receber e ler. E um parágrafo, convenhamos, é bem pouca coisa... - disse e sorriu.

- Interessante... embora ainda vago. - disse Tiago, sorrindo um tanto sem graça - E eu corro o risco de ser, vamos dizer, reprovado, entre o primeiro e o segundo módulo, ou entre o segundo e o terceiro? Por favor -, continuou ainda mais envergonhado - desculpe a sinceridade... e a preocupação tão infantil...

- Ora, não se envergonhe - atalhou o Professor, interrompendo-o -, são preocupações plenamente justificáveis. Na verdade, até agora ninguém foi reprovado, mas não se esqueça de entregar suas impressões e devolver o equipamento ao final dos três módulos. Lembre-se de que ao final do terceiro módulo, você devolverá o que tiver recebido da terceira vez e receberá o último lote de material, que será seu definitivamente e sobre o qual não desejaremos receber qualquer comentário. Ah, e receberá também seu recibo de quitação, isentando-o da multa rescisória do contrato que assinou.

Após uma longa pausa, o Professor perguntou:

- Então, Tiago, o que me diz?

Tiago não sabia o que responder. Não gostava de tomar decisões a esmo, sem estar certo, absolutamente certo do que se tratava o negócio... Esta postura o tinha feito galgar degraus onde trabalhara... Difícil decidir... Entretanto, a perspectiva de trabalhar com o Professor DeRose - não, não perguntaria por certificados; isso seria muito mesquinho -, a satisfação por ter sido selecionado, tudo isso pesava bastante... E a rigor, leria com atenção o tal contrato, mas parecia algo meio pró-forma, não se sentia ameaçado com a tal multa...

Tiago nunca soube se aceitou o convite porque almejava conhecer mais de perto o trabalho do Professor, se porque foi colocado contra a parede e obrigado a tomar uma decisão muito rapidamente, se porque teve o ego afagado por ter sido selecionado dentre tantos outros participantes do evento, ou até se porque já estava ficando atrasado para buscar sua mulher no trabalho. O fato é que aceitou.

- Bem, Professor - disse Tiago, ao fim de mais uma longa pausa -, vinda do senhor, uma proposta não poderia ser maliciosa ou ruim para qualquer pessoa. O senhor tem um nome a zelar e acredito que sua paixão por escrever e ensinar seja maior do que qualquer outro motivo. Vou aceitar, sim, e espero poder conhecer seu trabalho mais a fundo. Além do que estou muito feliz por ter sido selecionado...

- Tiago, você me deixa muito feliz - disse o Professor, satisfeito. - Na verdade, deixe-me dizer que aparentemente nunca nos enganamos em nossas escolhas: todos os que aceitaram nosso convite, você inclusive, eram os primeiros de nossa lista durante todos estes anos. E a julgar pelas avaliações e pelo acompanhamento de nossos outros, digamos, alunos, temos tido bastante sucesso com nosso prêmio. Espero que goste e aproveite bastante nossos ensinamentos. Mas deixe-me perguntar uma última vez: compreendeu inteiramente a questão da multa? Concorda com as condições?

Agora Tiago já não poderia voltar atrás.

- Entendi e aceito, Professor. Vamos em frente.

- Que bom, Tiago. Estou muito satisfeito. - disse o Professor e prosseguiu: - Minha secretária o acompanhará e lhe entregará o contrato para assinar e o cronograma de suas atividades.

O Professor levantou-se, abraçou Tiago carinhosa e demoradamente e chamou a secretária. Tiago não pôde deixar de notar um brilho de satisfação nos olhos do Professor e pensou: “Realmente acho que tomei a decisão correta. Esse homem é um professor nato. Parece que vive para ensinar. Gosta do que faz. Bem, ou será uma perda de tempo completa, ou nunca vou me esquecer desse, sei lá o quê, curso...”

E jamais se esqueceu mesmo...

Capítulo II - O Primeiro Módulo

Tiago decidiu nada contar sobre o tal prêmio a qualquer pessoa, só a sua mulher, a quem pediu o máximo segredo. Ainda tinha dúvidas quanto a ser uma coisa realmente interessante ou uma total perda de tempo... uma daquelas maneiras engraçadinhas de divulgar a empresa e os livros do Professor DeRose, ou seja, marketing gratuito. Sem falar no ridículo da tal multa... qualquer advogado de beira de esquina ganhava a causa para ele não pagar! Bem, com sua assinatura concordando poderia ser mais difícil... mas enfim qualquer coisa relativa ao Professor DeRose era currículo...

Na noite anterior, uma secretária muito educada tinha trazido os papéis para que assinasse e lhe entregou um cartão com o endereço de onde deveria buscar o material do primeiro módulo na segunda-feira, durante a manhã.

Saiu de casa num misto de excitação e receio de estar fazendo a coisa errada, mas chegou ao prédio por volta das nove horas, estacionou e só então reparou que não se tratava de um prédio comercial. Será que o Professor morava aqui? Duas vezes tocou a campainha para que a mesma secretária da noite anterior o recebesse com o mesmo sorriso agradável e o conduzisse a uma sala de espera. Pensou imediatamente que o próprio Professor o viria recepcionar.

Enganara-se. A secretária voltou logo depois com um embrulho pequeno, parecendo uma caixa embrulhada em papel pardo e fita adesiva. Tiago não resistiu e perguntou:

- Me desculpe a curiosidade, mas você me responderia uma coisa?

- Claro, o que é? - disse a secretária, que não parava de sorrir.

- O Professor mora aqui? - perguntou Tiago, meio sem graça.

- Sim e não. É um dos apartamentos dele, mas não tem dia certo de aparecer. Às vezes trabalha aqui, outras vem só pegar papéis, outras vem com a mulher e passa uns dias... Satisfeito? - respondeu.

- Bastante, obrigado. E desculpe mais uma vez... ele... ele está?

- Não senhor, hoje não veio. Mas ligou e pediu que lhe entregasse esse pacote que tinha deixado comigo ontem depois do encontro.

- Ah, tá... Bem, então já vou indo... desculpe a indiscrição. - disse Tiago levantando-se.

- Por nada. Por favor, assine aqui o recebimento do material. - pediu a secretária, eficiente.

No carro, a caminho da empresa, Tiago mudou de idéia e pelo celular inventou uma indisposição e voltou para casa. Não agüentava de curiosidade para estrear o equipamento, ou seja lá o que houvesse dentro do pacote. Além do mais, sua mulher estaria trabalhando e poderia desfrutar de total privacidade o dia inteiro. Se a coisa fosse ridícula como no fundo pensava que seria, iria trabalhar.

No sofá da sala abriu o pacote e um papel caiu no chão. Eram instruções de como utilizar um equipamento ou uma máquina qualquer. Bem simples, por sinal. Ligar no botão azul e desligar no botão vermelho. Ao fim de 30 dias, redigir uma pequena descrição do que se passou durante o período. Tudo ainda muito nublado, resolveu acabar logo com o suspense e desembrulhou o pacote.

Na verdade, era uma caixa preta, um cubo de aproximadamente vinte centímetros de aresta, com os dois botões. Colocou a caixa na mesa, sentou-se a sua frente e apertou o botão azul. A parte superior se abriu como uma tampa e uma pequena tela de computador apareceu. Após tocar em “Começar curso”, uma nova janela surgiu com nomes... muitos nomes... nomes que ele conhecia... nomes de pessoas... como era possível?... eram pessoas que tinham trabalhado com ele em todas as empresas por onde passara, inclusive na atual. O curioso, Tiago observou depois de uma análise mais detalhada, é que eram pessoas que sempre ficaram sob suas ordens, supervisão, chefia... enfim, subalternos. Tratava-se de uma tabela de várias linhas, com um nome na coluna esquerda e uma data na coluna direita.

Mas como sabiam de tudo isso? Como puderam obter esses dados? De repente a coisa começava a cheirar a uma invasão de privacidade, a um imiscuir-se em sua vida profissional. Que abuso! O que saberiam mais de sua vida? Chantagem? Não era tão importante ou rico assim para ser chantageado...

O primeiro nome era de sua primeira secretária. Clicou e não pôde esconder a surpresa. Um filme começou a ser apresentado na tela, imagem e som, com uma situação da qual se lembrava muito intensamente. Foi uma briga que teve com sua secretária por não ter despachado um memorando no dia certo, o que lhe trouxe problemas com o chefe do departamento de informática dias depois. Tinha-a colocado em seu devido lugar, apontado a necessidade do cumprimento de seus deveres no prazo solicitado e, didático, mostrou-lhe as conseqüências da não-atenção a suas responsabilidades: primeiro duas advertências e depois a demissão. Sumária. Uma empresa se construía com o cumprimento de regras e prazos, dentro de um modelo rígido de organização. E, naquela sala, ele ditava as regras e ela as cumpria.

Sua maior surpresa foi o caráter um tanto quanto esotérico do filme. Como teriam conseguido aquilo? Teria sido filmado durante a briga? Que coisa estranha... O que aconteceria com os outros nomes?

Tocou no segundo nome, o de um auxiliar de escritório que uma vez apanhara roubando metade de um pacote de biscoitos da mesa de uma telefonista. Sem pestanejar, levara o caso ao chefe do garoto, que o demitira sem maiores explicações. Afinal, hoje eram biscoitos, amanhã uma carteira e depois material da empresa, computadores e sabe-se lá o que esse tipo de gente poderia fazer.

Incrível! Como o Professor conseguira aquilo tudo? E filmado, ainda por cima? Mais parecia bruxaria do que tecnologia. E por que mostrar tudo aquilo a ele? Coisas já passadas... Curso? Que tipo de curso era aquele? Para quê? Não conseguia encontrar um nexo... Estava surpreso, desconfiado e curioso.

Outro nome: um servente que derramara café numa assistente social durante uma reunião em sua sala. Fez com que trouxesse água fervendo para limpar o vestido da mulher, esperou que ela fosse embora e lhe aplicou uma suspensão de três dias. Não queria demiti-lo porque achava que tinha potencial, mas não podia deixar passar em branco tamanho desleixo.

Outro clique e viu a supervisora de vendas que era na verdade subordinada a ele. Certa vez, pedira-lhe a cotação para novas fotocopiadoras da filial que seria inaugurada e ela apresentou um relatório com os preços das máquinas fornecidas por quatro empresas diferentes. No entanto, trocara as planilhas e os cálculos acabaram errados, os de um fornecedor como sendo os de outro. Acabaram comprando as máquinas pelo preço mais alto. Não pôde demiti-la porque tinha sido indicada pelo diretor-superintendente, mas conseguiu rebaixá-la a um cargo burocrático, onde não tivesse de realizar cálculos.

Já passava do meio-dia e Tiago estava como que vidrado na pequena tela, clicando nomes, lembrando-se de situações, revivendo fatos... definitivamente a coisa era curiosa... como conseguiram aquilo? como filmaram? não.. não acreditava em sobrenatural... não podia se tratar disso... era pura tecnologia, mas qual? E qual o propósito?

Enquanto fazia um lanche, tentou ligar os nomes, as empresas, as situações e o único ponto de contato continuava sendo o fato de se tratar de subalternos, gente sob sua direção, supervisão, chefia... mas por que apontar todas estas situações, se eram ocasiões onde tinha agido corretamente, no interesse da empresa, segundo suas ordens... Sempre fora humano: evitava xingar, ofender, gritar... Qual seria então a conexão entre estes fatos? Qual a razão subjacente para que voltasse a pensar neles?

Tiago era um homem inteligente, com formação matemática. Jogos o desafiavam e gostava de esmiuçar relações numéricas e lógicas. Os cliques foram se sucedendo, novas situações antigas se superpondo e nada fazia sentido. Saía do trabalho direto para casa, jantava e ia para o escritório rever o que já tinha visto ou assistir a novos filmes de sua vida profissional. Era disso que se tratava, no fundo: instâncias de sua vida como gerente. Essa era a primeira e única conclusão a que chegara até o momento, quase duas semanas dentro do primeiro módulo. Uma infinidade de nomes, datas e ocorrências que não faziam muito sentido dentro do escopo de um “curso”. Tentara entrar em contato com o Professor, mas fora informado de que estava em viagem. Teria de continuar sozinho.

Uma nova situação alertou-o para o fato de não se tratar apenas de pessoas sob seu comando, mas também profissionais visitantes, vendedores, como o caso de um vendedor que se recusava polidamente a conceder o mesmo desconto na compra de um equipamento importado que concedera três meses atrás. Deixou claro que se tratava de um absurdo sem tamanho e que provavelmente não recomendaria a empresa para nova tomada de preços futuramente. O mundo em crise, em recessão, e o tal vendedor empatando um negócio de cinco mil dólares por causa de percentagens, migalhas? Escorraçou o homem e fechou negócio com um concorrente, que também não concedeu o desconto pedido.

Trabalhara em uma firma de importações, onde resolvera colocar em prática algo que aprendera num seminário. Reunia a equipe uma vez por semana para uma sessão livre de sugestões e avaliações dos projetos em andamento. Resolveu premiar semanalmente um funcionário que sobressaísse por uma boa idéia, pela eficiente condução de uma estratégia ou por um negócio bem fechado. O premiado recebia uma salva de palmas, às vezes uma gratificação em dinheiro e o nome impresso no jornalzinho mensal. Posteriormente, decidiu “premiar” também o funcionário que menos contribuísse para o departamento durante a semana. A “vencedora” era sempre a mesma: uma moça do setor de entregas, que jamais abria a boca durante as reuniões e limitava-se a sorrir com seu “prêmio” semanal, um “Certificado Zero”. Ficou conhecida como mudinha e acabou saindo da empresa.

Os filmes iam e vinham, sempre com situações que o deixavam como se em transe, tentando desvendar que tipo de tecnologia era aquela que filmava o passado, o seu passado, situações escolhidas a dedo durante seu desempenho como gerente.

Tentava sempre impressionar seus superiores com relatórios bem redigidos, gráficos detalhados, apresentações impecáveis. Esmerava-se na comunicação com os empregados, na escolha das palavras, sempre com um sorriso nos lábios, uma palavra de carinho, uma piadinha oportuna, uma menção a uma notícia de última hora referente a alguma parte do mundo. E neste contexto, um filme deixou-o orgulhoso agora em retrospecto - ei, essa era a palavra: retrospecto... tratava-se de uma retrospectiva de sua vida gerencial... -, tanto quanto o deixara na ocasião em que o fato ocorreu. Foi durante uma apresentação da nova marca de um dos produtos. Falou depois do gerente de produção e do diretor de publicidade. Encontrara por acaso na mesa de reuniões do 20º andar um fax com algumas informações preciosas, o que tornou seu trabalho bem mais fácil. Fez uma apresentação impecável, as palavras e os gráficos movendo-se na tela em animações futurísticas. E graças a seu carisma, recebeu elogios do vice-presidente, que falou a seguir e destacou a importância de ter na empresa profissionais como ele. Sorriu agora como sorrira então: orgulhoso e tímido, mas recompensado.

Tão logo fora promovido em seu atual emprego, foi convidado pelos chefes de departamento para um churrasco num final de semana. Sentiu-se honrado e com a certeza de que sua ascensão não teria volta: estava fadado ao sucesso. Todos lhe deram os parabéns, ficou a par das fofocas do prédio, quem saía com quem, quem tinha interesse no cargo de quem, enfim, passou a fazer parte da “cúpula”, das intrigas da corte, prova mais do que clara da aceitação entre seus pares.

O Professor não se enganara quanto ao prazo. Utilizou os 30 dias a que tinha direito, vendo e revendo os vídeos, analisando as situações apresentadas, tentando decifrar as razões por trás daquela sucessão de ocorrências aparentemente sem nexo algum entre elas. Não teve sucesso algum tampouco quanto a como os tais vídeos teriam sido feitos e era sempre com um arrepio que associava o Professor a algum tipo de bruxo, feiticeiro ou metafísico, pois a rigor não poderia haver outra explicação.

Pensou várias vezes em desistir, mas a multa que se comprometera a pagar falava sempre mais alto; afinal, sua palavra também estava em jogo... sua reputação... Bem ou mal, tinha concordado com o “curso”, não podia voltar atrás. Será que algum conhecido sabia de tudo e estava esperando sua desistência para trazer tudo a conhecimento público? Pelo sim pelo não, resolveu prosseguir com os “estudos” da forma como fora instruído a fazer.

No penúltimo dia, sentou-se para escrever o relato devido, de modo a entregar o primeiro lote e apanhar o segundo lote de material. Não tinha a menor idéia do que escrever. Não sabia se o documento deveria ser longo ou breve, detalhado ou objetivo, profundo ou superficial, em primeira pessoa, em forma descritiva, um parágrafo de texto corrido ou em forma de itens. Pensou em tudo que fez, nos vídeos a que assistiu, nas situações por que passara, gostava da palavra retrospectiva... Continuava sem sair do lugar, não conseguia começar a escrever algo que fizesse sentido. Perguntou-se racionalmente: o que eu fiz nesses últimos 30 dias com esses vídeos? Assisti, observei, analisei... - isso, análise, analisei situações... Foi isso que fiz. Análise, retrospectiva, carreira, gerente, quatro palavras-chave que davam forma ao texto que produziria.

Já sem muita paciência e começando a achar que qualquer coisa que entregasse serviria - o Professor fora bem claro quanto a não haver julgamento ou avaliação -, decidiu-se pela simplicidade e honestidade:

“Durante 30 dias observei em retrospecto diversas situações ocorridas durante minha carreira gerencial até o presente momento. Identifiquei fatos, situações, nomes e datas. Recordei-me de como me senti durante os fatos relatados e posicionei-me dentro do contexto que envolvia cada situação apresentada, como pessoa e como profissional. Analisei cada decisão e consegui lembrar do que me levou a tomá-la. Concluo que agi estritamente dentro do escopo administrativo, visando única e exclusivamente ao bem da empresa, sem me deixar contaminar por fatos alheios ao trabalho, sentimentalismos, favorecimentos e particularizações. Toda decisão foi baseada no fato em si, considerando o momento em que ocorreu.”

Capítulo III - O Segundo Módulo

A entrega do material do segundo lote de estudos pareceu uma reedição da primeira vez. Mesmo endereço, mesma secretária, Professor DeRose viajando, caixa do mesmo tamanho embrulhada no mesmo papel. Chegou a pensar que estavam entregando o mesmo material da primeira vez, mas a secretária sorriu seu sorriso amável e cativante, garantindo que, embora parecidos, os pacotes eram essencialmente diferentes.

Não conversava muito com a mulher sobre trabalho e só de tempos a tempos ela perguntava sobre o tal “curso”, ao que respondia evasivamente, ainda que se trancasse no escritório de casa durante quase uma hora todas as noites. Ficara tão curioso com a situação como um todo que passara a sair mais cedo do trabalho, para poder passar mais tempo revisando os vídeos que vieram com o primeiro lote e com o segundo não foi diferente. Abriu o pacote, viu a mesma caixa preta, leu as mesmas instruções, apertou o mesmo botão azul e admirou-se de não ver surgir uma tela de computador, mas sim uma espécie de globo terrestre, com a diferença de ter no lugar de mares e continentes e países e cidades os mesmíssimos nomes e datas dos vídeos da primeira vez.

Aparentemente, o sistema era o mesmo: tocar na tela e assistir a um vídeo. Como era muito organizado, fizera anotações numa tabela que criara com os fatos, nomes e datas da primeira vez e agora acrescera uma nova coluna à tabela e já estava pronto para mais anotações. Resolveu seguir a mesma ordem que seguira da primeira vez e foi direto a sua primeira secretária, aquela que não despachara um memorando no dia certo. Ao tocar seu nome, algo fantástico aconteceu, embora não conseguisse explicar como. Era uma espécie de vídeo, mas ocupava o globo inteiro, em três dimensões. O globo girava à medida que novas personagens apareciam, como se uma câmera mudasse o ângulo de filmagem para dar mais realismo à cena. Era algo fantástico de se ver.

Assistiu à mesma cena a que assistira da primeira vez e imediatamente, sem cortes, viu a continuação da cena... não, não era a continuação, era como se fosse algo em paralelo... uma linha do tempo que saía da conversa dos dois e focalizava a mulher em outra sala. Era patente que a segunda cena se passava cronologicamente após a conversa... mas como fizeram isso? Era maravilhoso, cinematográfico, mas esta segunda parte não o envolvia em presença... A secretária saiu de sua sala, fechou a porta e dirigiu-se ao banheiro feminino do andar. Trancou-se num dos sanitários e desabou num choro convulso, soluçado, que durou mais de dez minutos. Foi se recompondo aos poucos, ficou algum tempo com o queixo apoiado nas mãos, saiu do sanitário, retocou a maquiagem, colocou seus óculos escuros e voltou ao trabalho. Enquanto ele se sentava à mesa de trabalho, ainda cinematograficamente o filme mudou para seu apartamento - Tiago não sabia por que, mas era certamente o apartamento dela, um apartamento comum, com uma criança vendo televisão e uma empregada terminando de passar algumas roupas. A secretária entrava pela porta da frente, beijava o filho, ia para a cozinha, sentava numa cadeira e tinha novo acesso de choro. Confortada pela empregada, contava a briga que tivera no trabalho, com fatos que Tiago desconhecia e que jamais passariam pela sua cabeça.

- Eu não entendo. Chego no horário, nunca esqueço de nada, trato ele bem, falo bem dele para as outras secretárias, não sei por que ele fez isso comigo. Me humilhou. Eu errei, claro, não tem desculpa, mas não é assim que se fala. Por quê, meu Deus, por quê? Fui tratada como uma cachorra. Não sou perfeita, mas não erro tanto assim... Se pelo menos eu tivesse outro lugar pra ir... mas preciso do emprego para pagar as contas e a escola do meu filho.

Tiago estava boquiaberto. Não sabia de nada disso, filho, contas, empregada... ela tinha errado, era dever dele enquanto chefe corrigi-la. Ora bolas. Mas o choro de alguma forma trazia algo novo à história, não sabia bem o que. E seria verdade? Ele não estava lá, como saberia? As coisas começavam a ficar mais complexas. E estranhas.

Na seqüência vinha o auxiliar de escritório que roubara o pacote de biscoitos pela metade. A mesma cena era reproduzida e sua continuação se dava na mesma sala em que Tiago vira o rapaz em flagrante delito, aparentemente após ter sido demitido. O garoto conversava com uma mulher - Tiago a reconhecia como uma recepcionista da empresa... não era telefonista, como pensara antes, enganara-se -, que estava enraivecida de saber que ele fora demitido.

- Mas você não roubou, eu te dei! Eu disse para passar na minha mesa e pegar o maldito biscoito. Ele não pode fazer isso com você! Eu vou falar com ele, que absurdo!

- Não precisa, tia, deixa pra lá. Eu não tava gostando mesmo daqui... Pobre é isso mesmo: a corda sempre estoura do lado do mais fraco. Brigado. Eu dou notícias.

Não, não podia ser verdade. Aquilo era alguma coisa preparada para fazê-lo pensar em algo, mas em quê? O garoto roubara, era um ladrãozinho, tinha cara de pivete. Ele tinha experiência com isso. Sabia avaliar a personalidade de seus funcionários. Nunca errara. E como provar que aquilo tudo era verdade? Tinha coisa estranha ali.

Próximo da lista: o servente suspenso por derramar café na assistente social. Já vira a cena algumas vezes da primeira vez, mas não contava com a seqüência. Ao sair de sua sala, o servente fora abordado pela assistente social, que previra a descompostura e o tinha esperado para saber o que acontecera. Foram conversando até o hall dos elevadores:

- Ele te mandou embora?

- Não, mas me suspendeu três dias.

- O quê? Isso é um abuso. Quem ele pensa que é?

- Uma besta, é o que ele é. O cara tem acessos. Acha que sabe tudo. Mas olha, não é só ele. Essa gente acha que ter cargo alto é ser autoridade, é ter competência, é poder mandar, humilhar, espezinhar... eu, pra dizer a verdade, já estou acostumado. Mas ele exagerou. Não era pra tanto. Isso acontece... Ainda se eu escorregasse sempre... Poxa, foi a primeira vez que eu derramei café em alguém... E agora eu estou ficando pior da minha doença no braço... às vezes fica meio dormente...

Uma besta???!!! Quem ele pensava que era para ter dito aquilo? Deveria tê-lo demitido, e não se contentado com a suspensão... Entretanto, a cena que veio depois o surpreendeu. Aparentemente era outro dia, e o servente conversava com a assistente social, que o convidava para trabalhar com ela na clínica onde prestava serviços, pelo dobro do salário. Imediatamente foi ao departamento de recursos humanos, pediu demissão e saíram juntos do prédio. Tiago ficou mais chocado por não se lembrar de que o servente se demitira. Tinha um cuidado extremo em saber onde andavam os funcionários, o que faziam, para onde iam. Deveria ter deixado este passar em branco... Nem sabia que se demitira. E pelo dobro do salário???? Tinha de haver algo errado.

Os dias se passavam, como da primeira vez. Embora desconfiado da veracidade dos filmes, das situações apresentadas como seqüências das cenas originais, Tiago não conseguia controlar a curiosidade e sentia que algo se remexia dentro dele, algo ruim, mas que ainda não sabia definir com precisão. No íntimo, sentia que tudo poderia ser mesmo verdade, autêntico.

A supervisora que trocara as planilhas na tomada de preços e fora rebaixada recebia, na seqüência, a visita de uma jovem que Tiago não conseguira identificar.

- Satisfeita agora, queridinha? Eu disse pra não se meter com o meu namorado que eu ia acabar com você.

- Você trocou as planilhas!!!!!

- Quem sabe? Muitas coisas inexplicáveis acontecem por aqui - ironizou a jovem. - Agora vê se aprende a não mexer com quem não deve.

- Mas eu não mexi com ninguém! Eu não sabia que ele tinha namorada...

- Agora sabe. Estou atrasada. Boa sorte no seu novo “cargo”. - e saiu da sala batendo a porta.

Ah, não, intriga de namorados era demais. O que isso tinha a ver com o Professor, com o “curso”, com a vida dele? E como ia saber que uma mulher enciumada trocara as planilhas da licitação? Não dava para saber... ou dava? Certo, poderia ter investigado, dado nova chance, tentado ouvir o outro lado... mas ninguém fazia isso, não era a praxe na gerência... e além disso, não tinha tempo para ficar bancando o detetive.

Tiago começava a encontrar um nexo distante entre as situações, algo próximo ao humor negro: parece que as coisas eram montadas para surpreendê-lo - essa era a palavra, surpresa. Ficava surpreso com o desenrolar de situações que para ele pareceram na época tão triviais. As seqüências eram surpreendentes, inesperadas... bem, isso se fossem mesmo verdadeiras... Não deveria ser, por certo. Como pudera se enganar tanto em relação a tanta coisa? como pudera não perceber tanta coisa? como pudera ficar alheio a tantos problemas? como pudera não evitar tanta injustiça? Não, tinha algo errado. Era um bom gerente, de alto gabarito, sempre fora o primeiro da turma, era reconhecido pelos colegas, respeitado por seus superiores.

O vendedor que não gostava de dar descontos constituiu-se em outra surpresa. A cena original prosseguia na sala do diretor-superintendente, com mais dois outros gerentes. A recomendação de não contratar os serviços do vendedor futuramente foi motivo de chacota. Tiago custou a entender o que se passava:

- Como é que é? Não contratar de novo? Com base em quê?

- Na não-concessão de descontos.

- Mas quem foi o incompetente que sugeriu esse absurdo?

- Tiago, o novo cara do décimo andar. E tá por escrito. O que o senhor vai fazer?

- O que eu sempre faço com palhaçadas, senhores. - e rasgou a recomendação, enquanto prosseguia. - E a firma continua conosco, entendido?

Incompetente??? Agora era demais. Chega! Isso está passando dos limites. E com isso Tiago passou uns bons dois dias sem sequer tocar na caixa mágica (era assim que a chamava agora). Ia dormir pensando nas situações, se poderiam ser consideradas verídicas... e algo crescia dentro dele, um misto de desconfiança com insatisfação com revolta e com... alguma coisa indefinível ainda. Incompetente era uma palavra forte demais para descrevê-lo. Mas na boca do diretor-superintendente ela tomou proporções gigantescas. Seria incompetente mesmo? Dúvidas... a cada dia mais dúvidas se estabeleciam em sua mente.

As reuniões semanais em que instituíra o Certificado Zero começaram a destroçar sua auto-estima como gerente. Viu os empregados se divertindo antes de uma reunião, fazendo piadas sobre quem seria o novo premiado, quais seriam os prêmios e ridicularizando a funcionária que jamais abria a boca. Afinal, sofria de gagueira e morria de vergonha de se expor. Uma das seqüências foi tocante e deixou Tiago arrasado. A funcionária chorando, soluçando, em meio a um encontro informal com as amigas do andar. A cena era mais patética ainda quando ela tentava falar sobre o assunto e gaguejava. Tiago jamais soubera até aquele momento, mas a psicóloga da empresa custou a elevar a auto-estima da menina.

Duas cenas, no entanto, chocaram Tiago ainda mais e colocaram sua auto-estima definitivamente no chão.

Uma foi a continuação da apresentação em que foi elogiado pelo vice-presidente. A câmera focalizava um bar no final da tarde da apresentação, com o próprio vice-presidente e alguns outros membros da cúpula da empresa. A conversa ia animada, quando alguém disse:

- O senhor sabia que o Tiago não preparou nada daquilo?

- Como assim?

- Ele roubou um fax que eu esqueci na mesa de reuniões do 20º andar há três dias. Eu recebi da filial nova. Não falei nada porque pensei que eu mesmo é que tinha perdido o documento. O fax estava ilegível em cima e eu não conseguiria provar que tinha vindo para o meu ramal.

- Isso é muito grave. Você tem certeza disso?

- Pedi que me enviassem outra vez e chegou ontem. Já estava tudo muito em cima da hora e resolvi não falar nada. Está aqui comigo, olha só.

- Mas isso é tudo o que o Tiago apresentou como sendo dele!

- Que pilantra! Amanhã levo o caso ao presidente. Algo me diz que esse é mais um que não vai durar muito aqui...

A outra foi o churrasco. Ou melhor, o que aconteceu antes do churrasco. O dono da casa onde foi realizado o encontro conversava com os demais convidados, aparentemente alguns dias antes da festa e Tiago não se conteve de raiva ao perceber que não tinha sido convidado por respeito ou adequação ao grupo. As reuniões aconteciam muito freqüentemente e ficaram com receio de que Tiago descobrisse e resolveram convidá-lo uma vez para manter as aparências. O que mais o chocou foi o que disseram dele.

- O cara é muito metido. Acha que sabe muito e que está por cima.

- É, mas não é assim que a presidência tá vendo ele não... Aliás, ninguém gosta dele. O pessoal de baixo morre de medo; afinal, ele já demitiu gente sem mais nem menos.

- Não tem dimensão de nada. Não sabe analisar os fatos.

- Olha, faz um favor pra gente: convida ele só dessa vez, tá? Dessa vez eu vou pra ser solidário, mas da próxima, se ele for, tô fora. - e todos riam e concordavam.

Tiago não poderia estar mais perplexo e arrasado. Parece que tinham destruído tudo em que acreditava com relação a si mesmo. Ainda desconfiava das cenas, mas no fundo sabia que eram verdadeiras, não sabia explicar o que sentia. Via e revia tudo e só conseguia ficar mais frustrado. Anos de estudo, de dedicação, para ser classificado de incompetente? Mas as referências eram tantas que começava a se convencer de que não era tão bom gerente como pensava. Precisava conversar com alguém, mas quem? Não queria falar disso no trabalho; aliás, não deveria, depois de tudo que descobriu sobre o que pensavam dele. Não queria envolver sua mulher, sempre tão alheia a seus problemas profissionais. Mais uma vez o Professor não foi encontrado. E mais uma vez estava sozinho. Ele e seus métodos de trabalho. Ele e suas culpas. Ele e suas frustrações. Ele e suas recentes descobertas: as implicações de suas decisões. E essas foram as palavras-chave que incluiu em seu relato de final de segundo módulo.

“Durante 30 dias analisei as implicações das situações que analisara da primeira vez. Estou cheio de dúvidas, frustrado, surpreso e arrasado com minhas descobertas. Chego a me perguntar se sou mesmo o bom gerente que pensava que eu era. Alargando o contexto em torno dos fatos observados, percebo que não atinei com o que envolvia as situações vividas. Algumas decisões tiveram causas que não soube investigar e que permaneceram desconhecidas para mim, gerando conseqüências que não me interessei em perseguir. Fiquei preso demais ao aspecto gerencial e descuidei de outros fatores, humanos ou inerentes ao trabalho em si, meu e dos empregados. Na verdade, não gerenciei nem administrei; meramente fiscalizei o cumprimento de normas, muita vezes incoerentes ou por demais estritas, e me ative ao momento, ignorando o antes e o depois.”

Capítulo IV - O Terceiro Módulo

A caminho do escritório ou residência do Professor (não sabia muito bem o que era aquele lugar), Tiago pensou seriamente em desistir de tudo. Por um lado a coisa toda parecia séria, objetivando reflexões interessantes, mas por outro tinha ares de uma grande brincadeira. Não, brincadeira não era a palavra. Piada, enrolação, gozação... não, também não. Bem, comprometera-se com o tal “curso” ou seja lá o que era aquilo; além disso, já tinha perdido dois meses naquilo e estava perto de chegar ao final. Na verdade, embora pesados e frustrantes, estes dois meses não tinham sido muito ruins. Estava surpreso em constatar que lá no fundo talvez estivesse aproveitando o processo, não saberia bem explicar por quê, mas algo lhe dizia que não era uma perda de tempo. Sentia-se em meio a um percurso que levaria a algum lugar, mas aonde?

A mesma secretária o recebeu sorridente e trocou seu “relatório” de um só parágrafo por um envelope contendo um CD. Esta era a terceira parte do conjunto. Não fez perguntas a respeito do Professor, pois sabia que teria a mesma resposta das outras vezes, ou seja, nada de relevante sobre seu paradeiro. Como já era final de tarde, foi para casa e colocou o CD no micro. O CD instalava automaticamente um programa simples que abria uma tela dividida em duas janelas verticais. Na da esquerda, várias linhas, todas seguindo o mesmo padrão, ou seja, da esquerda para a direita aparecia um número identificador, uma data, um nome e uma ou mais palavras, supostamente descrevendo uma situação. Na da direita sempre um texto, imagem ou vídeo diferente, que mudava de acordo com o clique em uma das linhas da esquerda.

Numa passada rápida de olhos pela janela da esquerda, não foi difícil reconhecer os episódios que tinha analisado das vezes anteriores. Mais uma vez, tudo aparecia numa seqüência lógica e cronológica. O Professor, definitivamente, tivera bastante trabalho em colher as informações referentes aos diversos fatos em diversos momentos. E sob diversos ângulos. Tinha sido assim das duas primeiras vezes e o processo se repetia da terceira. Teve um insight ao refletir sobre isso e redigiu um fragmento em seu bloco de anotações: “A importância de se analisar um fato em diversos momentos cronológicos e sob diversos ângulos.” Talvez incluísse esta observação em seu resumo ao final do módulo.

Decidiu seguir a mesma ordem que seguira das vezes anteriores na investigação dos eventos descritos. Clicou na linha “briga/secretária/memo”. O texto que apareceu na janela da direita, com fotos (onde eles teriam conseguido estas fotos?) e cópias dos documentos (e essas cópias, de onde vinham?), a exemplo do que experimentara anteriormente, só contribuiu para deixá-lo ainda mais surpreso e frustrado.

Ao demitir a secretária por não ter entregue o documento no prazo, Tiago pediu que uma outra secretária o digitasse. Assistiu a um curto trecho de vídeo que o mostrava assinando o memorando pronto enquanto falava ao telefone, entregando-o ao mensageiro para despachá-lo ao outro andar. Um outro trecho de vídeo aplicava zoom a uma parte do documento e, para seu desespero, identificou erros de digitação e, graças a uma seta vermelha surgida do nada, descobriu que o texto do memorando não era exatamente o que pedira para ser digitado. Tudo muito bem explicado, com balões, animações, texto original e texto digitado... Didático e chocante. Como não lera a versão final daquilo????!!!! Mas a história não terminava aí. Chegando ao departamento de destino, o documento ficara perdido embaixo de uma pilha de papéis durante meses e, no final das contas, nada fora executado.

Clicou em “demissão/auxiliar/recepcionista” e nova história surpreendente apareceu. O auxiliar de escritório demitido fora trabalhar numa outra empresa e continuara mantendo contato com a recepcionista que tentara defendê-lo. Chegaram a se encontrar diversas vezes fora da empresa, namoraram um tempo e chegaram a tramar algumas situações para deixar Tiago em situação difícil na empresa. A rigor, não conseguiram seu intento, mas Tiago entendia agora a causa de alguns “mal-entendidos”. Durante algumas semanas, coincidentemente o período em que os dois se encontravam fora da empresa, tivera problemas com alguns visitantes que se queixavam repetidamente de tê-lo procurado e não o terem encontrado. Achou aquilo estranho, pois era um homem que consultava sua agenda diariamente. Marcava as visitas, não as recebia e não sabia o que dizer quando lhe telefonavam. Por duas vezes o assunto rendeu séria discussão telefônica e numa terceira ocasião perdeu uma concorrência importante. Jamais pensou em verificar o problema em sua fonte mais provável: a recepção do prédio. Sua sorte foi o término do namoro entre os dois, que pôs um fim inexplicado aos problemas.

Quanto mais lia as histórias, ou melhor, a continuação delas, mais Tiago se decepcionava consigo mesmo. Ficava entre a raiva e a vontade de chorar. Como pudera ser tão vil, incompetente e imprevidente, tudo ao mesmo tempo. Não media a dimensão dos fatos, não investigava, não acompanhava... que gerente era ele, afinal? O Professor estava conseguindo algo cruel: sua frustração total como profissional.

Os dias passavam, com eles os cliques, e com os cliques as histórias se sucediam num desenrolar lamentável de equívocos e surpresas desagradáveis.

O texto referente a “servente/café/suspensão” era bem curto. E doloroso. Dois meses depois do incidente com o servente que derramara café na assistente social e por isso fora suspenso por três dias, o problema no braço do servente se agravou. Foi internado, operado, acabando por se aposentar por incapacidade. Instruído por um parente, processou a empresa - como Tiago nunca soubera disso???!!! - alegando que seu problema piorara com o trabalho que realizava enquanto era funcionário. Para total surpresa de Tiago, um vídeo muito bem produzido reproduzia partes dos autos do processo, onde Tiago era citado como tendo forçado por várias vezes o servente a carregar bandejas pesadas, com garrafas de água, café e xícaras. E como se não bastasse, era submetido a humilhações na frente de visitantes! Os advogados da empresa conseguiram arquivar o processo, mas, tivesse prosseguido, Tiago certamente seria chamado a depor.
Tiago não sabia o que sentir. Os fatos eram verdadeiros, sim, mas a parte da humilhação não era. Bem, sob a ótica do servente, poderia ser... Mas era mentira que o obrigava a carregar bandejas pesadas; nunca fizera isso. No entanto, por razões que não conseguia explicar, sua revolta não era tão grande quanto esperava que fosse; de algum modo se sentia responsável pelos acontecimentos, e não ultrajado como julgara que ficaria. Talvez não devesse ter sido tão rude; talvez devesse ter pedido desculpas; talvez não devesse ter suspendido o servente; ou talvez devesse ter se preocupado em saber o que aconteceu com ele depois da suspensão.

O item “vendas/fotocopiadoras/planilhas” também apontava fatos curiosos, que mais uma vez remetiam a sua falta de percepção. A supervisora de vendas que fora rebaixada foi quem, sem alarde, indicou a moça que viria a ser assistente de Tiago dois meses depois do episódio. Amigas de infância, a nova assistente recebeu todo o apoio da amiga rebaixada, inclusive na criação das planilhas que Tiago sempre pedia que fossem preparadas antes das reuniões. Bastaria um olhar mais atento na parte inferior das páginas para identificar a sigla da ex-supervisora, “bbb”.

Tiago ficou chocado com o texto curto sobe “descontos”, que fazia referência à ocasião em que desqualificou uma empresa numa concorrência porque seu representante não concedeu desconto algum na compra. Aquela compra especificamente ficou com uma empresa concorrente, mas sua recomendação de não fazer mais negócio com a primeira, como ele tinha visto anteriormente, fora rasgada por seus superiores. Tivesse ele acompanhado melhor as licitações futuras, teria percebido que os pedidos de compra que assinava pertenciam à mesma empresa que tentara bloquear.

As histórias não se resumiam ao que acontecia na empresa em que trabalhava. No item “prêmio/mudinha”, reviu a triste história da funcionária tímida que insistia em premiar por suas não-contribuições. A continuação da história mostrava uma moça feliz trabalhando em outra empresa, em uma função diferente da que exercia no setor de compras da empresa onde Tiago era seu chefe. No almoxarifado da nova empresa, sobressaía por sua iniciativa e capacidade de organização. Sua gagueira não a atrapalhava em quase nada.

Fazia já semanas que a auto-estima de Tiago se deteriorava aos poucos com o que via e lia na tela do computador. Cada item era um novo golpe em sua outrora impecável imagem de bom gerente. Em “fax/apresentação/plágio”, percebeu toda a repercussão do que fizera, em parte por ingenuidade, ao tomar para si o fax com informações importantes que encontrara na sala de reuniões do 20º andar, em parte com uma certa culpa, pois as informações eram vitais para o sucesso de sua apresentação. E culpa era só o que sentia agora, especialmente porque à época não se preocupou em identificar o autor ou destinatário das informações e, constatava mais uma vez, o fato foi largamente comentado pelas suas costas. Tampouco percebeu à época que este episódio estava por trás de uma decisão superior que então não fizera muito sentido: fora afastado da liderança do projeto que tão bem defendera durante sua apresentação. Todo esse tempo ficou sem saber que o novo líder do projeto era ninguém menos do que o dono do fax que “tomara emprestado” na ocasião.

Quando tudo parecia conspirar contra Tiago, após pesquisar todos os itens da interminável lista, o último, “churrasco”, trazia algo de alentador em meio ao mar de decepção e frustração em que se encontrava. A história descrevia, com fotos e vídeos bastante nítidos para serem montagens, um outro churrasco onde se encontrava a “cúpula” da empresa e para o qual Tiago, obviamente, não fora convidado. Em dado momento da confraternização, seu nome vem à tona e forma-se um debate em torno de suas qualificações como gerente. Para sua surpresa, um grupo defendia até mesmo sua demissão! Entretanto, os demais ponderavam que embora tomasse decisões desarrazoadas, embora deixasse a desejar em muitos aspectos, no fundo tinha potencial e poderia ser aproveitado, com a orientação correta. Compreendeu então porque subitamente dois de seus superiores começaram a incentivá-lo a participar de congressos e seminários, inclusive sugerindo que fizesse uma especialização em alguma área de seu interesse. O que mais lhe chamou a atenção foi uma frase dita por um dos que o defendiam: “Ele se concentra muito no momento, no fato; não investiga o que houve referente ao fato anteriormente, nem procura acompanhar o desenrolar dos acontecimentos.”

Possivelmente aí estava o grande achado de todo o “curso”. De repente, inexplicavelmente, toda a frustração começou a dar lugar a uma certa satisfação, um arremedo de felicidade, como quando se descobre algo que pode ser um marco em nossa vida. Tiago não saberia explicar como nem por que, mas num instante toda a mágoa, raiva e decepção consigo mesmo começaram a se desvanecer, dando lugar a algo que ainda não sabia bem o que era, mas que não era tão ruim, um sentimento que não era tão negativo, tão carregado. E foi com esta sensação ainda não identificada que redigiu seu último comentário a ser entregue ao Professor.

“Durante 30 dias investiguei os fatos e personagens das situações que observara e analisara da primeira e da segunda vez, levando em consideração os diversos momentos cronológicos que se seguiram aos fatos e os diversos ângulos possíveis de interpretação dos mesmos. Falhei básica e infantilmente na procura de antecedentes e no acompanhamento dos fatos. Não percebi então que uma decisão tem repercussões às quais precisamos ficar atentos. Percebo agora, embora um tanto tardiamente, minha arrogância em achar que tudo sabia e minha presunção em me colocar acima dos demais colegas e subalternos. Tomar decisões, dar ordens, assinar documentos... são ações que não se esgotam no momento em que ocorrem. É preciso acompanhar os fatos durante algum tempo, analisando e avaliando suas causas e seus desdobramentos. Além disso, e igualmente importante, é avaliar a dimensão destes fatos em relação a seu contexto e às pessoas envolvidas. Por fim, flexibilizar normas e procedimentos não equivale a ceder ou ir contra os preceitos de moral e da missão da empresa.”

Capítulo V - O Começo

Num meio-termo entre desolado e esperançoso após tudo que vivenciara, Tiago mais uma vez se dirigiu ao endereço que já conhecia de cor para devolver o CD e entregar seu comentário. Nenhuma surpresa, como era de se esperar: a secretária recebeu o envelope com o CD e a folha de papel com o comentário. Conversaram por alguns minutos, o tempo de Tiago tomar o café que a moça lhe oferecera, e ao final do encontro ela lhe entregou dois envelopes, recomendando-lhe expressamente que só os lesse quando chegasse em casa. Ah, sim, e depois de ler, que por favor abrisse sua caixa postal eletrônica: haveria uma mensagem do Professor para ele.

Foi direto para casa, sentou-se na poltrona da sala e abriu o primeiro e maior dos envelopes. Era um certificado de conclusão, atestando que ele, Tiago, concluíra com louvor o Curso de Formação de Super-Gerentes da Gerentes Unidos, sob a supervisão do Professor De Rose. Bem, menos mal, poderia adicionar mais um item a seu currículo, mas de alguma forma o certificado, que antes era tão importante, de certa forma já não tinha o peso que tivera até então.

O segundo envelope, bem menor, continha apenas uma breve nota manuscrita, assinada pelo próprio Professor:

“Caro Tiago. Espero que tenha aproveitado bastante sua experiência destes três últimos meses. Não se preocupe em saber como tive acesso a seu desempenho, mas sei exatamente como se sente. Tudo isto é fruto de algo que talvez você jamais tenha feito durante todos estes anos de estudo e trabalho: reflexão. Não por incompetência, esteja certo disso, mas por falta de orientação. Somos constantemente incentivados a apresentar resultados e tomar decisões, mas nunca a refletir sobre estes resultados e estas decisões. Hoje começa sua caminhada em direção a ser realmente um Super-Gerente. Não pense nem por um momento que você somente cometeu erros até agora; longe disso. Você demonstrou competência, visão, liderança e iniciativa em diversas ocasiões. Faltou-lhe até hoje a observação, o poder de análise, a investigação, em suma, a reflexão que você não achava parte integrante da função de chefia. Apontei, nestes últimos 90 dias, o fracasso, visando a abrir-lhe os olhos para o sucesso, que você tem plenas capacidades de atingir. Espero ter contribuído para o que você será no futuro. Talvez sua carreira de gerente na verdade esteja começando hoje. Todos merecem uma segunda chance. Seus funcionários e você. Boa sorte. Prof. DeRose.”

Recostou-se mais ainda na poltrona, relaxando o corpo, fechou os olhos e refletiu sobre tudo que tinha vivido nestes últimos três meses. Professor DeRose... uma grande pessoa... Tudo ainda parecia um pouco fantasioso, mas inegavelmente foram três meses produtivos... cansativos... mas produtivos... reflexão... então esse era o segredo... Super-Gerente... de alguma forma sentiu-se aliviado... tiravam-lhe um peso enorme do corpo, da mente... acabou adormecendo...

Acordou sozinho no auditório do congresso, metade das luzes já estavam apagadas, duas pessoas limpavam o lugar e um vigia caminhava em sua direção, provavelmente para acordá-lo e pedir que deixasse o local. Levantou-se sem jeito - deveria ter sido motivo de risos para os que saíram -, entrou no carro e foi para casa, uma sensação estranha a perturbá-lo. As imagens eram muito reais, mas tudo fora um sonho, não havia qualquer dúvida. Fora, no entanto, um daqueles sonhos vívidos, intensos, em cores, que parecem realmente ter durado muito tempo, neste caso, três meses. Então estava explicado o caráter fantasioso de toda a história, mas... - os fatos eram reais! Seriam verdadeiras também as conseqüências, as implicações? Havia uma maneira de descobrir, mas sem saber por que, tinha medo. Parecia que algo inusitado iria mudar sua vida radicalmente dali para frente. Sabia o que fazer, mas hesitava, temia o que sabia que encontraria.

Em casa tomou banho, jantou, assistiu ao jornal, conversou com a mulher, ouviu sua reprimenda por não ter ido buscá-la no trabalho, como fora combinado.. enfim deixou o tempo passar, como que evitando ir aonde tinha de ir, fazer o que tinha de fazer. A curiosidade foi maior. Precisava tirar tudo a limpo. Um sonho? Somente isso? Mas se estivesse certo, tudo seria mais inexplicável ainda. Até agora tudo fazia sentido: um sonho. Intenso, mas só um sonho. Não agüentou mais e foi ao computador, onde, se existisse alguma, estaria a resposta a suas dúvidas. Ligou a máquina, fechou os olhos, hesitou e constatou por fim o que já esperava: lá estavam todas as suas anotações, os três parágrafos, tudo que escrevera durante o “sonho” estava lá. E não estava dormindo agora. Estava mais acordado do que nunca.

Acordado e confuso. O “curso” fora um sonho... mas a prova de que ele existira estava ali à sua frente. Paranormalidade? Alucinação? Não havia explicação plausível. Estava tudo ali: digitado, salvo, arquivado...

Havia mais uma última coisa a fazer. A prova das provas. O inexplicável do inexplicável. Abriu o programa de e-mail e, como afirmara a secretária, havia uma mensagem do Professor: “Parabéns, Tiago, você conseguiu. Foi um processo árduo, mas dificilmente você se arrependerá. Algumas coisas deixam marcas que não se apagam. Use tudo que experimentou como uma ferramenta em sua vida profissional. Não se deixe abater. Observe, analise, investigue e, acima de tudo, reflita. Reflita sempre. Sobre tudo e todos. O bom gerente vê à frente antes de todos os demais. Prever o futuro implica investigar o passado e analisar o presente. Boa sorte. Prof. DeRose.” No anexo, os três resumos que entregara e o recibo de quitação eximindo-o da multa rescisória.

Não procurou o remetente do e-mail. Nem os cartões de visita. Tampouco os telefones e endereços. Por alguma obscura razão, sabia que nada disso existia concretamente. Jamais conseguiria encontrar o Professor DeRose. E, no entanto, tinha-lhe ensinado algo que jamais esqueceria. Não era mais a mesma pessoa. Nem o mesmo gerente. Sorriu. Afinal, agora era um Super-Gerente... ou começava a sê-lo...

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Atualizado em 24/07/10